quinta-feira, 1 de março de 2018

Conversas d'Ouvido com Rafael Carvalho

Continuamos com o ciclo dedicado à edição deste ano do Festival Tremor, que anualmente invade os Açores, agitando a Ilha de São Miguel. Hoje o nosso convidado é o músico, Rafael Carvalho que dedilha com mestria as doze cordas da Viola da Terra. Editou no ano passado o disco, "Relheiras" e chega agora ao Ouvido Alternativo, para antecipar o concerto especial que está a preparar para dia 20 de Março, no Tremor 2018...


Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
Rafael Carvalho: Desde bastante novo. O meu Pai tocava Violão em casa, de vez em quando e minha mãe sempre foi de passar os dias a cantar. Depois, com o tempo, entrei para um grupo folclórico, aprendi Viola da Terra e com isso, veio o gosto pela música tradicional.

Enquanto músico a solo, num registo instrumental, alguma vez sentes falta da voz?
Faço parte de vários projectos musicais. Alguns têm voz e outros não. Depende do contexto de cada momento musical. No entanto, a maior parte dos meus concertos são de música instrumental e não sinto, necessariamente, a falta da voz naqueles contextos.

Para quem não conhece, explica-nos o que tem a viola da terra, de tão especial?
A Viola da Terra é o instrumento da cultura popular Açoriana. Para além da sua sonoridade especial por ter 12 cordas divididas em 5 ordens (3 ordens duplas e duas ordens triplas) é ainda o instrumento que foi e é confidente dos Açorianos, parte integrante das suas manifestações populares ao longo de todo o ano. Temos ainda os seus dois corações, representando a Saudade, a distância, o amor e os afectos. É um instrumento com um passado rico, com um repertório instrumental tradicional único no nosso país e ainda tem um longo caminho para ser explorado nas suas potencialidades.

Enquanto músico açoreano, quais as tuas maiores dificuldades?
A nossa pequena dimensão populacional que limita, à partida, uma presença musical forte e reconhecida no mercado. A nossa distância do Continente Português que nos condiciona às Ilhas. Mas, ao mesmo tempo, a pouca força que temos por estarmos fora do “centro de decisão” e do interesse dos mercados.

Este ano vais actuar no Tremor, o que esperas desse concerto?
Este ano o Tremor lançou um desafio enorme de juntarmos a Viola da Terra à música electrónica. Espero, com alguma ansiedade, que chegue depressa ao dia para demonstrar o trabalho que estou a desenvolver com o FLIP (Filipe Furtado) e que tem sido muito envolvente e um motivo de descoberta a cada ensaio que passa. Será um concerto diferente de tudo o que tenho feito mas o resultado final, acredito, será merecedor do Tremor, da sua filosofia, e do desafio que nos foi apresentado.

Como gostas de descrever o teu estilo musical?
Não tenho, propriamente, uma definição concreta do meu estilo musical uma vez que me dedico à música tradicional mas, ao mesmo tempo, à composição de novos temas e ao desenvolvimento de abordagens e de técnicas que não eram próprias do instrumento. De certa forma, sem descurar as minhas raízes e técnicas aprendidas, tenho estado a criar a minha própria sonoridade musical dentro da execução da Viola da Terra que, neste momento, não é semelhante à de mais ninguém nem a nada que tenha sido feito anteriormente nos Açores.

Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Gosto muito de ler. Todos os dias leio um pouco, nem que seja só 10 minutos.

Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
A vantagem, para mim, tem sido as pessoas que vamos conhecendo e com quem nos vamos relacionando, bem como os locais que vamos tendo o prazer de visitar. A desvantagem, no meu caso e pelo facto de também estar sempre a pesquisar, a transcrever, a preparar aulas de ensino da Viola, é de que não consigo desacelerar. Todo o dia é sobre música e todo o dia é sobre Viola. Isso, em muitas situações, é bastante complicado, pois é preciso sair deste mundo por momentos do nosso dia e viver o resto que faz parte do nosso dia a dia.

Quais as tuas maiores influências musicais?
Cresci ouvindo o Mestre Carlos Paredes, alguém que muito me inspira e cuja música, que nos deixou, é inigualável. Nos nossos dias ouço muito o trabalho do Amadeu Magalhães, o mais completo instrumentista que conheço no nosso País. Nos Açores o que mais me inspirou e inspira é o Mestre da Viola da Terra Miguel de Braga Pimentel.

Como preferes ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
Prefiro ouvir música no carro, sozinho, quando vou nas minhas deslocações para tocar. Costuma ser em Cd mas agora já se usam as pen disk.

Qual o disco da tua vida?
O Melhor de Carlos Paredes”.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
O Cavaquinho do Amadeu” de Amadeu Magalhães.

O que andas a ouvir de momento/Qual a tua mais recente descoberta musical?
O que ouço no carro são os Cd's que vão sendo lançados por colegas, dentro da música tradicional ou ligada aos instrumentos tradicionais, quase exclusivamente. Ando a ouvir, neste momento, os Cd's dos “Tributo”, grupo da Ilha de São Jorge. As minhas descobertas podem ser apenas de recolhas que vou fazendo ou que vão sendo editadas e não, necessariamente, de Cd's de Grupos. Foi editado, recentemente, o Cd de recolhas “As Violas dos Açores”, pela editora “Açor” e descobri execuções instrumentais da Viola da Terra, de outras Ilhas dos Açores, de uma riqueza enorme e de um grau de dificuldade elevadíssimo.

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
Nos últimos tempos não me estou a recordar de nenhum episódio. Quando era mais novo lembro-me de andarmos sempre a tocar temas dos “Resistência”, “Xutos” e outros grupos que estavam no Top Nacional. Tocávamos com frequência o tema “Nasce Selvagem” dos Resistência. A introdução do tema era em forma de arpejo, muito semelhante à versão/introdução do tema “Praia” que tocávamos na minha freguesia. Quando subi ao palco, para uma actuação com o folclore e, sendo eu o solista que dava as entradas dos temas, comecei a tocar o “Nasce Selvagem” ao invés da “Praia”. Foi só por alguns segundos, os outros músicos ficaram a olhar sem perceber e eu parei e recomecei o tema correcto. Pouca gente se apercebeu mas, para mim, foi um enorme embaraço pois não costumava errar nenhuma entrada.

Com que músico/banda gostarias de efectuar um dueto/parceria?
Pedro Caldeira Cabral.
Pedro Jóia.

Para quem gostarias de abrir um concerto?
Não tenho, propriamente, esta visão. Esta situação surge muito com as Bandas que actuam, principalmente, em festivais. É normal ver nos seus currículos, por exemplo, dizerem que abriram para esta ou aquela banda. No tipo de música que eu faço, gosto de partilhas musicais e isto, para mim, não é partilhar um palco abrindo para outro músico, é partilhar o palco tocando um tema juntos.

Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
Tenho vontade de um dia tocar no CCB. Mas também em outros grandes Centros Culturais do País. Tocar na Gulbenkian, a minha música, seria algo de inesquecível.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
Tenho um gosto musical diversificado (apesar de ouvir com mais frequência Violas e mais Violas) e há muitos concertos que me vão marcando pelo contexto de cada local, pelo contexto da minha vida pessoal e profissional em determinados momentos. Tudo isso influencia a forma como ouvimos e sentimos os concertos. Por mais tempo que tenha estado a reflectir não consigo definir um concerto como o melhor.

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
O que gostava mais de ter assistido seria Carlos Paredes, mas tal já não será possível.
Ainda não ouvi a Brigada Víctor Jara ao vivo.

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
Todos os do Woodstock.

Tens algum guilty pleasure musical?
Adoro Kelly Family.

Projectos para o futuro?
Tenho um quarto Cd em fase de pré produção, só com temas tradicionais Açorianos, e executados só com uma Viola da Terra. Serão algumas dezenas de temas, num Cd que pretende reunir diferentes variações de peças e temas de todas as Ilhas dos Açores. O objectivo é ter, num único trabalho musical, um leque extenso e variado de temas dos Açores, principalmente para os que se dedicam ao estudo do instrumento, mas também como produto para os que nos visitam. Ainda tenho a ideia de um quarto livro do meu “Método para Viola da Terra” mas este projecto só será para executar dentro de um ou dois anos.

Que pergunta gostarias que te fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta.
Nenhuma. Cada entrevista é diferente.

Que música de outro artista, gostarias que tivesse sido composta por ti?
"Verdes Anos" … de Carlos Paredes.

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
Normalmente, acho que os Açorianos escolheriam uma “Saudade”. No entanto, um funeral é algo já bastante triste e deprimente e não gostaria que o meu fosse assim. Gostava de algo alegre, com um bom ritmo. Não sei! Surpreendam-me! Ahahahah!

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.

Antes de terminarmos, ficamos ao som de Rafael Carvalho, devidamente acompanhado pela incontornável viola da terra, no tema "Saudade".

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