quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Conversas d'Ouvido com :papercutz


Entrevista com :papercutz, projecto do músico e compositor Bruno Miguel. Podemos definir o estilo musical como pop electrónica, mas é muito mais que isso... Na nossa opinião são ainda um dos segredos mais bem guardados, um dos nomes mais interessantes e desconhecidos da música nacional. Editaram até ao momento uma série de Ep's e dois belíssimos discos, Lylac (2008) e The Blur Between Us (2012), este ano preparam-se para editar o novo álbum King Ruiner. Há muito que desejávamos poder contar com a participação de :papercutz nas "Conversas d'Ouvido", finalmente esse dia chegou...

Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
:papercutz (Bruno Miguel)Com tempo e alguma leitura sobre este assunto, tenho para mim, que a música é a nossa maior forma de escapismo. A linguagem não é de todo universal como apregoado mas o efeito sim. Alguns poderão dizer o mesmo de outras artes, o cinema por exemplo é provavelmente a experiência mais imersiva que existe mas a música interfere com o nosso dia-a-dia e cria um sentido de identificação da forma mais profunda que conheço. Logo, quando és um adolescente faz sentido o apego que sentimos a ela. Eu não fui diferente, sendo que tudo se torna ainda mais forte quando começas a aprender um instrumento e a escrever música. Isso, e algo totalmente banal que conto entre amigos mas um dos motivos que me levou a procurar nova música, e que não parou desde então, foi uma prenda do meu pai, um Discman. Na altura pensei, bem já que tenho isto, vou procurar começar a minha coleção o que levou a tentar perceber a música que realmente gostava e me identificava com.

Como surgiu o nome :papercutz?
O nome refere-se à arte Japonesa de cortes de papel, como a edição quase plástica que tinha incialmente com temas em estúdio. Lembro-me que um dos primeiros projectos que fiz e que me deu alguma confiança para começar um trabalho a solo como :papercutz, um CD multimédia para os Maus Hábitos. Foi um convite da Go Go Pixel, um estúdio de artes digitais de amigos. O processo passou pelo uso de samples e acabou por definir o arranque da escrita dos primeiros temas originais que eventualmente dariam origem ao álbum 'Lylac'. Com o tempo fui substituindo esses sons pré gravados por gravações minhas e de outros músicos mas penso que o nome ainda descreve o cuidado que tenho com os temas na fase de escrita e produção. Os dois pontos foram uma ideia de alguém que gere comigo a componente visual desde o início do projecto, a Susana Maia, a designer responsável pelo estúdio mencionado, de forma o tornar o nome único.

Como gostas de descrever o teu estilo musical?
Aquando do lançamento de 'Lylac', numa entrevista com a Antena 3 mencionei o estilo Pop Alternativo como o adequado ao projecto, ao que me foi devolvido a noção que estes dois termos juntos não faziam sentido. Engraçado ver que agora se intitulam como a alternativa pop. Isso faz-me crer que as etiquetas são utensílios vazios. Mas percebo a sua utilidade. Claro que não acho que faço música difícil de descrever, são temas maioritariamente electrónicos que divagam entre a canção e o formato instrumental, com elementos de fácil audição, pelas harmonias vocais e instrumentais e outros que requerem algum tempo e que dão à composição densidade. Em cada álbum há uma narrativa que se torna mais clara quando o ouvinte revisita os temas e a sonoridade destes serve esse propósito.

Este ano irás editar o novo disco, “King Ruiner”, já podes levantar um pouco o véu sobre o que podemos esperar?
Eu tenho descrito o álbum já em algumas entrevistas mas para o conhecer melhor recomendo virem assistir a um dos próximos concertos. Foi esta a forma que escolhemos para o apresentar e a que permite uma maior aproximação com as pessoas que têm seguido o projecto. De momento existe muita música disponível para ser ouvida e os concertos continuam a ser algo especial porque as pessoas param por uns instantes para se perderem no que estão a ouvir (ou pelo menos assim o espero) e tratamos cada evento de uma forma única.

Depois de Melissa Veras, surge agora Catarina Miranda, és um fã confesso de belíssimas vozes femininas?
Sem dúvida. O que não quer dizer que não goste de vozes masculinas mas nos temas de :papercutz rapidamente percebi que a voz feminina era o contraponto ideal para os meus elementos instrumentais. Eu também canto em alguns temas mas apenas para criar alguma diversidade e quando a letra assim o pede. Penso que o registo da Catarina é o ideal para o novo álbum por que tanto funciona com temas mais lentos e negros e outros totalmente o oposto que entram no alinhamento, além de que eu idealizei uma noção de texturas corais para este último trabalho e ela tem uma facilidade em criar essas estruturas vocais ricas em harmonia.

Já colaboraste com nomes como Chris Coady, como foi a experiência?
Um momento de aprendizagem. O Chris é uma pessoa parecida comigo em alguns aspectos, um fanático por música, tecnologia, um workaholic que passa horas fechado num estúdio. Como ele diz, alguém que contribui para muitos dos álbuns e temas que acabam por ser tocados por festivais fora mas que raramente tem tempo de seguir e ver ao vivo, depois de terminados. Então o que faz é dedicar-se totalmente aos projectos em que está envolvido, porque é uma forma de os viver naquele período do tempo. E isso só é possível se tiveres uma visão global do que o projeto pede, de servires sempre os temas, para que se mantenham relevantes em anos seguintes. Ele tem uma confiança no que faz mas também uma vontade de experimentar, quer seja com equipamento profissional ou totalmente esotérico e DIY, não existem regras para se criar algo que nos entusiasma e isso mudou a minha forma demasiado pragmática de trabalhar a música.

:papercutz - "Lylac" (2008)
Denotamos nos teus trabalhos uma elevada preocupação estética, não só a nível musical, mas também visual, exemplo disso são os belíssimos artwork que acompanham os teus álbuns. Para ti a música é muito mais do que uma sonoridade?
A perceção da música pode ser muito mais que uma sonoridade. Aliás é essa uma suas forças, algo que mencionei anteriormente. O ouvinte preenche uma parte do puzzle através da sua interpretação, que pode ser clara ou deixada em aberto. Agora, o meu problema sempre foi que por vezes os músicos ou editoras estragam isso com material visual que diminui a sua música. Então decidi sempre, se fosse para ter um elemento visual que acompanhasse o meu trabalho, que ele tivesse o mesmo cuidado que eu tenho com os temas. Como disse, tenho a sorte de contar com alguém que me ajuda nesse sentido mas ainda melhor, a Susana tem uma humildade e capacidade de perceber que por vezes o ideal é convidar pessoas externas ao projecto, com trabalho que se adequa ao procurado no momento. Daí já ter trabalhado com pessoas como por exemplo Júlio Dolbeth. Quando a Susana me mostrou o trabalho dele, eu percebi logo o porquê da escolha dela, porque os dois juntos, música e imagem, criava um objecto ainda mais rico.

:papercutz - "The Blur Between Us" (2012)
Agora queremos conhecer-te um pouco melhor... Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Cinema, é outra paixão. Ainda mais quando estas duas formas se unem num grande trabalho. Quem acompanha :papercutz sabe isso pelas recolhas de bandas sonoras, com associação aos filmes, que fiz de nome 'Dream Scores'.



Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
A vantagem é ter um papel activo numa área em que tanto acredito. A desvantagem é o pouco tempo que fica para tudo o resto.

Quais as tuas maiores influências musicais?
Artistas com uma visão e voz própria que se estende pela sua discografia mas que não tem medo de se reinventarem. São vários.

Como preferes ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
Se tiver tempo, a experiência de parar e todo o ritual que acompanha Vinil é bastante compensadora mas sempre gostei de poder ter a minha música num meio que permita deslocação.

O streaming está a “matar” ou a “salvar” a música?
A (indústria da) música nunca vai morrer nem ser verdadeiramente salva se pensarmos que isso implica um equilibro de forças e uma maior redistribuição entre grandes grupos e artistas com pequenas editoras ou até independentes. Pouco ou nada mudou nesse sentido com o streaming.

Qual o disco da tua vida?
Não existe um que possa chamar isso.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
O último trabalho do instrumentista Colin Stetson, 'All This I Do For Glory'. É um artista único em que por vezes não consigo perceber a origem de alguns dos sons que surgem na composição, o que devolve alguma magia à audição.

O que andas a ouvir de momento? Qual a tua mais recente descoberta musical?
De momento tenho sobretudo ouvido música fora do espectro ocidental. Por exemplo, tenho voltado a (tive o primeiro contacto na altura em que escrevia o "Lylac") artistas Japoneses de música ambiental e instrumental e descobri Midori Takada cujo álbum 'Through the Looking Glass' acabou de ser re-editado e que recomendo.

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
Nos primeiros concertos, tinha quase tudo ligado e alimentado a um computador. Num evento, esqueci-me de o ligar à corrente e ficou a correr apenas com bateria. Houve um pequeno estrondo de algumas máquinas minhas e ficamos inicialmente sem perceber o que se tinha passado. Quando cheguei à conclusão do que poderia ser, o público ficou em total silêncio a ver-me inicializar um computador.

Com que músico/banda gostarias de efectuar um dueto/parceria?
Alguns mas existe uma pareceria interessante a decorrer de momento. Uma colaboração encomendada pela Red Bull Portugal que culmina com um concerto no festival Lisb-On e com outros elementos nacionais da Red Bull Music Academy. Para além de uma interação que vamos afinar em ensaios gerais, existe também uma composição de um tema novo que estou a terminar, com o Mushug dos Octapush e MMMOOONNNOOO e que vamos tocar ao vivo.

Para quem gostarias de abrir um concerto?
Não tenho preferência, aliás gosto da ideia e desafio de tocar num palco com artistas que até eu desconheço.

Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
Primavera Sound.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
Não posso dizer que foi o melhor mas diferente de tudo o que já tinha visto até à altura, Steve Reich "Music for 18 Musicians", Casa Da Música.

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
Kate Bush.

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
The Cure, fim do encanto dos anos 80, a apresentar o álbum 'Disintegration'.

Qual o teu guilty pleasure musical?
Lembro-me de uma conversa numa mesa, no fim do SXSW com elementos dos !!! (Chk Chk Chk), o manager deles, e um elemento da editora nos Estados Unidos que conheci no festival, sobre que quem ouvisse a música do grupo não percebia que estão lá influências que poderiam ser consideradas guilty pleasures. Ao serem apresentados de uma forma um pouco diferente, tem uma reacção totalmente contrária ao esperado da sua associação a um público de concertos indie. Percebi que o termo apenas existe na cabeça das pessoas e evidentemente é uma contradição. Mas eu entendo a pergunta, e diria que o que é produzido pela equipa Max Martin, seria uma resposta aproximada.

Projectos para o futuro?
O lançamento do álbum, claro, e queremos voltar a concertos fora do país já no fim do ano. Estou também a compor a minha primeira banda sonora com o Carlos Conceição, um realizador que penso ser um dos melhores da nossa nova geração, e temos planos para trabalharmos juntos em outros projectos nos próximos meses, inclusive videos para 'King Ruiner'.

Que pergunta gostarias que te fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta?
O que falta à musica em Portugal? Massa crítica com uma opinião independente do que chega do exterior.

Que música de outro artista gostarias que tivesse sido composta por ti?
Ryuichi Sakamoto "Merry Christmas Mr Lawrence" ou até mesmo a versão vocal com David Sylvian, "Forbidden Colours".

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
Um funeral? É um ritual (religioso) que eu não quero para mim de todo. Prefiro a ideia de um jantar de despedida, com amigos e família.... e sem música. Idealmente o barulho de algumas boas lembranças.

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro
Ficamos agora ao som de :papercutz e do mais recente single "Trust/Surrender".

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