sexta-feira, 21 de julho de 2017

Conversas d'Ouvido com Alpargatos

Entrevista com a banda brasileira Alpargatos, pela voz do vocalista e guitarrista Afonso Antunes. A banda conta ainda com Bruno dos Anjos (guitarra), Leonardo Braga (baixo) e Pedro Nectoux (bateria). Nesta edição das "Conversas d'Ouvido", além das questões habituais, não falamos só de música, muito por "culpa"  da banda de Porto Alegre, que nos propõem uma reflexão sobre a sociedade actual. No fundo a arte também tem o poder de nos fazer pensar, de fundamentar opiniões e de nos enriquecer a alma... 

Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
Afonso Antunes: É uma coisa de berço mesmo, não sei bem como explicar. Sempre tive uma vontade imensa de me expressar e de aflorar os sentimentos que existiam. A música foi minha casa de munição, o lugar onde encontrei violões e palavras, podendo tocar de forma mais profunda o mundo ao meu redor.

Como surgiu o nome Alpargatos?
Alpargatos surgiu de um trocadilho infâme entre o calçado, a alpargata, que é muito utilizada na vestimenta tradicionalista do gaudério, e o gato, bicho, que na gíria representa a beleza de alguém, o charme, enfim. É um nome irônico, obviamente, mas que acabou pegando. Era a gente com 16, 17 anos de idade, rindo de nós mesmos, do fato de sermos uma banda e afirmando pros outros, meio que pra salvar nossa pele, que nada daquilo precisava ser levado muito a sério. É mais ou menos o mesmo discurso da nossa geração, essa que vive na internet, no twitter, rindo da própria cara, fazendo da auto-sabotagem o elogio. Esse nome surgiu em 2012, num contexto em que muitas bandas indie estavam em alta: The Black Keys, Arctic Monkeys, MGMT, Two Door Cinema Club, Franz Ferdinand… Todas elas tinham uma pegada irônica muito forte. Desde clipes toscos propositais, com dancinhas e mau enquadramento, até uma postura de palco debochada. As próprias roupas hipster tinham (e ainda têm) esse quê de “olha só essa camiseta com estampa igual à toalha de mesa da minha vó”, “esse bigodinho igual ao que meu pai usava nos anos 80.”

Editaram este ano o EP, “Essa Cidade Cheia de Heróis” para quem ainda não ouviu o que pode esperar?
O “Essa cidade...” é um EP visual, antes de mais nada. É uma experiência sensorial entre canções e imagens que transmitem, unidas, uma mensagem maior do que um EP tradicional. A experiência desse trabalho só se torna completa ao assistir a curta-metragem. Mas também é possível apenas ouvir as músicas, e essa é uma experiência diferente, isso que é o mais bacana: a possibilidade de várias leituras sobre uma mesma obra, diversas camadas de mensagem. Musicalmente, é um EP mais denso e sombrio do que o nosso primogênito, Rodovia do Parque (lançado em 2015). Se o Rodovia era esteticamente mais solar nas letras, nas harmonias e nos arranjos construídos em cima de metais e violões de nylon, o novo é nebuloso. Há nele um clima pesado, criado por bateria e baixo tensos, por guitarras e sintetizadores dissonantes, rasgados, e letras, evidentes na participação do Mun Rá, que já não contemplam mais aquela esperança que havia antes. O primeiro EP propõe a Rodovia do Parque (estrada na entrada de Porto Alegre) como uma rota de fuga, uma solução pras angústias e pro descompasso da vida urbana. “Essa cidade cheia de heróis” foi o que restou dessa fuga, dessa cidade abandonada, dessa distopia: um vazio, um medo e um pavoroso silêncio. Os que resistem são os heróis.

A vossa música reveste-se de forte carga visual, como surgiu a ideia de retratarem o vosso EP com uma curta-metragem?
O Bruno dos Anjos, guitarrista da banda e diretor do clipe, trabalha há muito tempo com audiovisual e tem trabalhos lindos, muito sensíveis, que dizem muito, também, sobre a sensibilidade da banda. Há tempos queríamos reverter esse talento em algo para a Alpargatos, mas ainda não sabíamos bem como. Queríamos fazer algo grande, diferente do habitual. Já havíamos lançado, ano passado, o clipe de "Ciclovia" produzido por ele, mas no fundo desejávamos algo maior. Foi na metade final do ano passado, quando começamos a fazer shows conjuntos com o Mun-Rá, dividindo o palco e as canções, que surgiu a ideia. Inspirado pela energia brutal dos guris (criança), eu escrevi “Super-Homem, Astronauta”, música que abre o ep, planejando, desde sempre, que fosse uma parceria. Na mesma época, eu também havia escrito “Pássaro/Avião” e nós percebemos que havia um diálogo profundo entre as duas, que falavam muito do momento conturbado que passávamos (impeachment da Dilma, extinção de fundações do Rio Grande do Sul, onda de violência em Porto Alegre). Surgiu uma vontade de gravarmos as canções, mas pensamos que um EP de duas músicas seria, além de óbvio, insuficiente para nossas pretensões. Nessa angústia, surgiu a ideia de fazermos um curta-metragem para acompanhá-las. Aí tudo se encaixou: já tínhamos o talento e a vontade do Bruno, e agora tínhamos também uma ideia a ser executada.

A vossa música está atenta ao mundo que vos rodeia, quais as vossas principais preocupações com a sociedade actual?
Creio que seja impossível falar da sociedade como um todo sem olhar para o nosso redor, nosso bairro, nossa aldeia. Porto Alegre foi considerada uma das 50 cidades mais perigosas do mundo. Isso é completamente alarmante para um lugar que há menos de 20 anos era considerado a capital mais segura do país. Algo aconteceu, e nós fomos os culpados disso. Fomos nós que desocupamos as ruas, fomos nós que nos fechamos em condomínios e shoppings, tirando o lazer e a cultura dos espaços públicos. Qualquer estudo urbanístico vai nos mostrar que onde se põe uma grade, um muro, se aumenta potencialmente a violência, porque é ali se evidencia a desigualdade social. Quem tem grana fica por dentro, quem não tem fica de fora, socialmente exposto. Quem tá por dentro tem acesso às livrarias, às universidades, aos teatros, ao lazer, e a quem tá de fora resta só a sombra. Aí, quando a revolta chega na nossa porta, quando as ruas se tornam pontos cegos, desertos, e vemos nossas famílias e amigos com medo de sair de casa, nós queremos justiça. E aí nos banhamos em ódio, nos cegamos pros problemas estruturais. Disso, surgem os fascismos, as aberrações políticas que sempre estão prontas para soltar os cães raivosos em cima da gente. Mas fomos nós mesmos que plantamos isso, quando, lá no começo, nos fechamos em shoppings e condomínios. Ocupar o espaço público, com arte, com literatura, com cultura, e lutar por acesso universal à educação, à saúde, ao lazer, é o começo de uma solução.

Como gostam de descrever o vosso estilo musical?
Eis uma pergunta complicada. Sempre tivemos certo incômodo com o rótulo de “rock”. Apesar de sermos consumidores e de, sim, nos inspirarmos e sermos produto de muitas bandas, nunca nos consideramos roqueiros. A apoderação desse termo por certas vertentes, bem como certa prepotência de parte dos fãs do gênero, tornou o ambiente do rock muito hostil, muito excludente. O roqueiro tem deixado de fazer o papel questionador e tem se tornado, como diria Caetano, o velhote inimigo que morreu ontem. Hoje, vemos muito mais atitude no Funk e no RAP, por exemplo. Não é à toa, são gêneros periféricos, que sofrem muito preconceito por parte da cena rockeira. À cena independente brasileira coube juntar os cacos deixados pelo fim da hegemonia do rock, para a partir disso construir um novo espaço, mais plural e menos odioso.
No início, nós nos definimos como uma mistura entre o indie e a MPB, mas a pegada era um pouco diferente, mais puxada pro que fazia Los Hermanos e Vanguart. Hoje, talvez só possamos manter esse rótulo de indie, mas muito mais pela bandeira de ser do mundo independente do que propriamente por estética. No fundo, por mais clichê que soe, cabe somente ao público nos definir.

Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
A arte e as letras de modo geral. Tudo que toca a sensibilidade e oferece um modo de ver e expressar: as artes plásticas, o cinema e, principalmente, a literatura. Isso tudo sempre caminhou lado a lado, é indissociável.

Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
A vantagem é o contato com o público, a troca de energia e identificação, dividir o seu mundo com as pessoas ao redor, pegar estrada, conhecer muita gente interessante e talentosa. A desvantagem é fazer isso numa sociedade que, por um lado idealiza o músico como um ser iluminado, superior, dono de um dom, e por outro lado desvaloriza, justamente por não enxergar a música como um trabalho, que põe o pão na mesa assim como qualquer outro. Com isso, o consumo de arte se reduz, os espaços para cultura vão desaparecendo e o artista tem cada vez mais dificuldades para viver disso.

Quais as vossas maiores influências musicais?
Caetano Veloso, Vitor Ramil, Jorge Ben, Clube da Esquina, Gilberto Gil, Tame Impala, Gorillaz, Warpaint, Deep Sea Diver, Carroll, Devendra Banhart, Elza Soares, Céu, O Terno, Ventre, Boogarins, Baleia, Carne Doce, Metá Metá, Criolo, Mun Rá, Radiohead, Los Hermanos…

Como preferem ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
Apesar de, na maioria do tempo, usarmos as plataformas de streaming, ainda somos muito ligados ao CD e ao vinil, pelo valor do objeto, pela importância do encarte e da arte gráfica como parte da construção do conceito de um disco.

O streaming está a “matar” ou a “salvar” a música?
Não podemos ser fatalistas ao tratar de tecnologia, isso soa sempre muito conservador e piegas. O streaming tem os seus defeitos, como o valor baixo pago aos artistas, mas isso é algo que pode ser tranquilamente discutido e aperfeiçoado. Ao mesmo tempo, ele tem a vantagem de facilitar o consumo e o acesso à música, o que vai ajudar principalmente aquele artista que vive à margem da mídia tradicional.

Qual o disco da tua vida?
Cores, Nomes” do Caetano Veloso.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
Manual, ou Guia Livre de Dissolução dos Sonhos” do Boogarins e “Secrets” do Deep Sea Diver.

O que andas a ouvir de momento/Qual a tua mais recente descoberta musical?
No momento, não consigo ouvir 30 minutos de música sem acabar colocando alguma do Ventre na sequência. É um power trio lá do Rio Janeiro, com quem vamos tocar agora, dia 21 de julho. Impossível descrever o quão incrível é o som que eles fazem. Todo mundo deveria ouvir. Outro que também não sai do player é o novo do Kendrick Lamar.

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
Num dos nossos primeiros shows, lá pelo começo de 2014, a minha guitarra se desprendeu da correia no meio de uma música e caiu feio no chão. Foi de doer na alma. Depois disso, passei o show inteiro sem conseguir afinar ela direito.

Com que músico/banda gostariam de efectuar um dueto/parceria?
Juçara Marçal e Devendra Banhart. A Juçara por ser, simplesmente, a maior cantora brasileira da atualidade. O Devendra por ser um dos caras mais sensíveis da música atual, com uma capacidade ímpar de misturar gêneros e criar novas formas, além do afeto infinito dele pela música brasileira.

Para quem gostarias de abrir um concerto?
Céu e Cícero, dois dos maiores expoentes da Nova MPB, mares de inspiração.

Em que palco (nacional ou internacional) gostariam um dia de actuar?
Acho que o grande norte é tocar no Lollapalooza. Mas gostaríamos, mesmo, é de fazer todo o circuito independente que está rolando pelo Brasil: Bananada, DoSol, Morrostock, Coquetel Molotov, El Mapa de Todos, entre tantos festivais sensacionais acontecendo país adentro.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
Caetano Veloso na turnê do Abraçaço, acompanhado pela Banda Cê.  

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
Radiohead, maior banda de todos os tempos.

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
Queria ter assistido ao festival da Record de 67. Caetano, Gil e Mutantes apresentando o Tropicalismo. Chico Buarque e Edu Lobo sendo lançados como artista. Nara Leão, Elis e Tom Jobim reafirmando toda aquela influência da Bossa Nova. E todos peitando a repressão da ditadura militar que batia à porta. Acho que o Brasil moderno, esse como nós conhecemos hoje, nasceu naquele dia. Foi o nosso Woodstock.

Qual o vosso guilty pleasure musical?
O Pedro, nosso baterista, é muito fã de K-Pop. Nada pode ser mais guilty pleasure que isso.

Projectos para o futuro?
Colocar o “Essa cidade cheia de heróis” a tocar país afora. Fazer chegar ao máximo de pessoas possível. Conhecer novos lugares, novas bandas, novos públicos. Fazer muitos festivais. Ajudar a construir e a consolidar a cena independente de Porto Alegre.

Que pergunta gostariam que vos fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta.
Uma pergunta muito importante é: como se estrutura um artista independente? Digo isso, porque ninguém sai do chão sozinho. Tem muita gente, além dos músicos, ali nos bastidores, por trás do palco, fazendo o trabalho acontecer, a mensagem ir mais longe, dando sangue e suor. Nossa equipe, por exemplo, tem três mulheres incríveis trabalhando sete dias por semana. Organizando, discutindo, fazendo as maiores correrias. A Marta Karrer (assessora de imprensa e social mídia) e a Carina Goettems (produtora e RP) formaram juntas a Almu - agenciamento criativo. Também trabalha conosco a incrível Mariana Sartori (designer gráfica) que faz toda identidade visual, das capas dos discos aos cartazes de show. A elas, nós somos muito gratos. E também a todas casas de shows, a todos produtores culturais e selos independentes (gracias, Escápula Records, nossa firma!) que dão espaço para os novos artistas. Sem esses, nada seríamos.

Que música de outro artista, gostarias que tivesse sido composta por ti?
Trovoa”, do Maurício Pereira.

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
"Cais", do Milton Nascimento, Clube da Esquina.

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.

Ficamos agora ao som dos Alpargatos e da curta-metragem que serve de suporte ao EP, Essa Cidade Cheia de Heróis.

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